Não pira, vampiro
 



Diálogos

Não pira, vampiro

Michele Vaz Pradella


Flap, flap, flap, flap.

Acordei com um farfalhar de asas dentro do meu quarto.

Droga, bem que me avisaram para não alugar um desses apartamentos antigos na Zona Norte de Porto Alegre.

(Nota mental 1: pesquisar se farfalhar é o verbo correto para esta situação. Nota mental 2: chamar um dedetizador.)

Antes que eu pudesse elaborar a terceira nota mental, o barulho virou um "PUF!", logo um cheiro de podridão e mofo tomou conta da casa inteira. Na minha frente, uma criatura mais morta do que viva - ou seria morta-viva? - tentava limpar a poeira das roupas. O vestuário dele era, no mínimo, peculiar. De que século veio esta coisa?

— Boa noite — cumprimentou ele, como se fosse muito normal entrar voando pelo quarto de uma pessoa e se transformar num passe de mágica.

— Ahn? Quem é o senhor?

— Não está me reconhecendo, jovem donzela? Sou o Príncipe dos Sortilégios!

— Mister M?

— NÃO! O Senhor das Trevas!

— Slenderman? Nossa, sou tua fã, acabei de ir ao cine…

— CLARO QUE NÃO! Sou aquele, o inominável.

— Voldemort?

— Ai, a cultura pop acabou com a minha reputação. Sou o Drácula, minha filha, tu já leste duas vezes o livro do Bram, assististe a todos os meus filmes, inclusive aqueles bem questionáveis.

— Oh, MEU DEUS! Conde Drácula, em pessoa, aqui no meu quarto! Que honra!

— Não sou mais Conde, infelizmente. O governo da Transilvânia tomou meu título, as terras, até os escravos. Dizem que mortos não têm propriedades, imagine só! Tive que voar até o Brasil pra tentar uma nova vida.

— Ih... tá ferrado. Não tinha outro país, não? Aqui é muito tropical, faz calor na maior parte das regiões e tal.

— Por isso vim para essa tal de Porto Alegre. Dizem que aqui chove bastante. Achei ótimo.

— É... Mas o que o senhor quer comigo mesmo? Sem querer ser mal-educada, mas amanhã tenho que trabalhar bem cedo.

— Preciso de uma ajuda para fazer parte deste novo mundo. A senhorita é uma grande fã da minha pessoa, não é?

— Sim, claro. Depois podemos fazer uma selfie?

— O que a senhorita quiser. Mas primeiro, me ajude.

— Ok, o que te aflige, Drac? Posso te chamar de Drac, né?

— O ideal seria “Senhor Supremo das Trevas”, mas pode ser Drac, não estou em condições de pedir muito. O problema maior, creio eu, é a falta de credibilidade em seres da minha espécie. Aquela história de vampirinhos que brilham no sol acabou com a minha reputação.

— Tem razão, aqueles livros são péssimos. Os filmes, então? O ó!

— Pois é. Então, pensei que a senhorita poderia escrever um livro, talvez até uma trilogia, falando a verdade sobre os vampiros. Como são maus, terríveis, sanguinários, mordem pescoços de donzelas indefesas e...

— Opa, alto lá, Drac! Em primeiro lugar, não tem nenhuma donzela indefesa por aí. Vivemos uma época de mulheres empoderadas, com muito orgulho! E, além do mais, ficar mordendo pescocinhos, hoje em dia, configura assédio.

— Oh, meus demônios! E se eu tentasse entrar para a política? Com meus poderes, posso até chegar à Presidência da República, já imaginou?

— Ih, acho que um parente seu já teve essa ideia antes…

— O quê???

— Deixa pra lá. Já sei! E se tu colocasse uma peruca ruiva, pintasse (e lixasse, tá precisando) estas unhas enormes de rosa pink, e começasse a se apresentar nas noites porto-alegrenses como Drac Queen? Hahaha, entendeu? DRAC QUEEN!

— Senhorita, não sei o que significa esta palavra, mas percebo que está claramente desrespeitando a minha pessoa sepulcral. Vou-me embora, procurar algum caixão confortável para dormir pelos próximos cem anos, quem sabe eu acorde em uma época mais aprazível. Vejo que lá, naquela esquina, parece haver um cemitério perfeito. Adeus!

Flap, flap, flap.

— Drac, espera, pra esse lado fica o Cremató...Tarde demais!

***

Michele Vaz Pradella nasceu em Porto Alegre em 1983. Trabalha como repórter e colunista do Diário Gaúcho. Formada em Jornalismo pela PUCRS, tem pós-graduação em Jornalismo Digital e certificação adicional em Escrita Criativa. Ama livros, novelas, artigos de papelaria e vídeos de bichinhos fofos. É "mãe" da Capitu, uma gata com olhos de cigana oblíqua e dissimulada.

 

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